Uma história de amor do nosso tempo, com toda dor e emoção de nos entregarmos ao desconhecido.
Confira a resenha do livro Copo Vazio, de Natalia Timerman e publicado pela Todavia em 2021.
Desde que a internet e os smartphones entraram nas nossas vidas, muita coisa mudou.
Há quem nasceu antes dela e teve que se adaptar às mudanças, nem sempre fáceis ou positivas. E há quem já nasceu nesse novo mundo, conectado e acelerado pelo contexto digital. O fato é que independente do momento em que você passou a se conectar e navegar pelas ondas da internet (risos) você sentiu o impacto.
Se por um lado a tecnologia facilitou nossas vidas, tornando as tarefas mais práticas e ao alcance de um clique. Por outro lado, ela nos afastou da realidade, nos dando uma vida virtual.
As redes sociais ou aplicativos de relacionamento nos permitiram criar uma nova versão de nós mesmos onde divulgamos só o que nos convém, com a foto que gostamos, no lugar legal, bons amigos e família feliz. Um ambiente controlado, em que alimentamos dia a dia uma realidade paralela vivida pela nossa melhor versão.
Claro que isso modificou diretamente a forma com que nos relacionamos. Quem nos conhece através das redes ou aplicativos, vê uma versão que não existe, ou na melhor das hipóteses, conhece só um pedaço de nós. Assim, fica difícil saber quem somos de verdade, e estabelecer laços, confiar, se entregar.
E como numa via de mão dupla, ficamos sempre atentos em quem vemos do outro lado… Será que dá para confiar? Será que o que diz nessa bio é verdade? Afinal, conhecemos muito bem como esse jogo funciona.
Copo Vazio
E é nesse contexto complexo, que a conhecemos, a Mirela, protagonista de Copo Vazio. Uma jovem arquiteta, que mora sozinha e leva uma vida normal: trabalho, amigos, boa relação com a família… Porém, o fato de ela estar solteira, parece incomodar.
Alguns amigos e sua irmã insistem que ela busque um novo relacionamento em um aplicativo, para não ficar sozinha e aproveitar mais a vida. Sob esses argumentos — extremamente questionáveis — ela acaba cedendo.
E mesmo sem acreditar nessa nova forma de encontrar um namorado, é persuadida, acreditando que seus pensamentos eram ultrapassados e que agora era assim que funcionava.
“Mirela achava de extremo mau gosto a ideia de disponibilizar num catálogo de pessoas para, em troca, ter acesso a outro.”
Inesperadamente acaba por encontrar Pedro, um cara bonito que estava na cidade para estudar, fazia doutorado em Ciência Política. Pensa na sorte que teve de encontrar alguém tão interessante em um aplicativo. Ela realmente se empolgou.
E no fim, acabou dando tudo certo. Ou não.
A história dos dois começa, rodeada de encontros, sozinhos e com amigos, longas conversas onde compartilharam seus sonhos, objetivos e interesses. Faziam planos, se divertiam muito. De forma avassaladora a relação evolui e até conheceram os familiares um do outro.
Tudo ia bem e rápido. Se viam diariamente, com encontros sempre regados de muita bebida, conversas e música. Em poucos meses a conexão era alta, a paixão estava forte e a cada dia ficava mais fácil se entregar e acreditar. Parecia que se conheciam há muito tempo.
Porém, do nada, sem razão aparente, em um dia normal, ele some. Não parece, não atende o celular, não responde às mensagens. Mirela fica inicialmente assustada, será que aconteceu alguma coisa? Será que está em algum hospital sem poder se comunicar? Será que morreu?
“Ontem Pedro estava aqui, participava do dia de Mirela, contava de sua manhã, sua noite de sono. Escrevia mensagens espontâneas, parecia pensar nela boa parte do dia, solicitava sua presença. Hoje, nada.”
Passamos então a acompanhar Mirela após o sumiço de Pedro, com suas angústias, dúvidas, medos, inseguranças, perturbações, narradas com riqueza de detalhes. Entre mensagens que ela lê e relê buscando algum sinal, momentos que ela revive em sua cabeça querendo encontrar algum indício do desaparecimento de Pedro.
Inúmeras mensagens, visitas e encontros que ela ensaia em sua imaginação sem coragem e força para realizar. Como é difícil entender uma coisa dessas! Quem errou, porque ser dessa maneira, como esquecer e seguir em frente?
Aceitar um fim pode não ser fácil, mas quando sabemos que acabou, podemos nos permitir uma fase triste, sofrer para logo depois superar e seguir em frente. Porém, o sumiço, deixa um vazio, muitas perguntas sem resposta, muitos caminhos que não levam para lugar nenhum.
Mirela passa a viver em um conflito interno, revivendo cada momento que tiveram juntos, tentando entender o que aconteceu, precisa entender.
Numa narrativa envolvente, dinâmica e realista, que intercala passado e presente, vamos acompanhando cada etapa desse sofrimento, nos colocando no lugar da personagem e sentindo o que ela sente, vendo a situação como ela vê.
“… faz dezenove dias da última vez que viu Pedro. Dezenove dias amargurados em que Mirela chora a caminho do trabalho e precisa se conter para, chegando lá, não continuar chorando”.
Expectativas externas
Além disso, o que mais me pegou não foi só o relacionamento que não acabou bem e o sofrimento da personagem, mas, principalmente, como a personagem se colocou nessa situação.
Mirela me pareceu uma mulher feliz, com seu apartamento, seu trabalho, seus amigos, tinha uma vida social… E acabou cedendo a uma pressão externa para procurar um namorado por aplicativo, porque segundo as pessoas a sua volta ela “precisava disso”.
Fiquei pensando muito sobre isso, pois me pareceu que o perfil da Mirella indicava que ela não conhecia esse jogo de relacionamento modernos, que nasciam em aplicativos e terminavam em ghosting. Ela entrou realmente de cabeça muito rápido e confiou estar tudo bem, desligou qualquer alerta e se entregou.
Claro, que os amigos e a irmã que a incentivaram a entrar no aplicativo, não queriam que ela sofresse. Sei também que o relacionamento poderia ter dado certo ou não, independente da forma onde se conheceram. Mas o ponto de reflexão é: até onde vamos para atender as expectativas dos outros?
Ela não queria isso, não acreditava nesse modelo de relacionamento. Mesmo assim cedeu, só pela insistência das pessoas. Vi nessa e em outras atitudes da personagem, como ela não se via como uma mulher segura e independente, capaz de se impor e dizer não, dando muita importância para a opinião dos outros.
E quantas de nós não somos assim? Quantas vezes não temos uma visão distorcida de si (alô, síndrome da impostora!) e seguimos um caminho, mesmo sem ter muita certeza, só para não dizer que não. Ou por não nos julgarmos que nossas escolhas e opiniões são de fato as melhores para nós mesmas.
Sob esse aspecto vale muito refletir sobre a história, afinal, ela atendeu a uma expectativa alheia, mas as consequências foram sofridas só por ela.
Dizer não exige muita coragem, desagradar pessoas queridas à nossa volta para defender algo que queremos é muito difícil. Mas, pode ser o melhor a se fazer.
Relações Líquidas
Vale muito a leitura para entender um pouco sobre as relações do nosso tempo, sua fluidez, com toda a sua intensidade e superficialidade mediada por aplicativos. Como uma relação de poucos meses, pode ir de um nível de intimidade de um casal que está há anos juntos para completos desconhecidos?
Li esse livro em um clube do livro e meninas na faixa de vinte e poucos anos que comentavam como isso era normal, “Quem nunca levou um ghosting?” elas diziam…
Pedro, apesar de todos os fatos e convivência dos dois, nunca disse estar namorando Mirela. E o ponto é: precisava dizer? Eles viviam a rotina de um casal, será que isso não bastava?
Para além dessas burocracias, penso em respeito, consideração e responsabilidade afetiva, questões também bastante em alta.
Sem dúvidas é um livro perturbador, que nos faz refletir muito sobre as novas dinâmicas das relações e sobre como isso tudo nos afeta.
Com um final surpreendente, que nos deixa com uma pulga gigante atrás da orelha, com vontade de ler a continuação do livro (que não existe). Uma história de amor do nosso tempo, que apresenta muito bem os prós e contras de nos entregarmos ao desconhecido.
Link para compra do livro: Copo Vazio, Natalia Timerman.
Link para nova obra da escritora: As pequenas chances, na Amazon.
Episódio "o vazio de um ghosting, com Natalia Timerman" do podcast Bom dia, Obvious, para o Clube do Livro Obvious + Submarino. Uma conversa linda com a autora do livro.
Obrigada por ler! 🤓
Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.
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Nos vemos no próximo texto 🥰
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