História atual e verossímil, em que boas intenções estão, na verdade, recheadas de racismo nos fazendo refletir sobre privilégios e a naturalização de preconceitos.
Confira a resenha do livro Resenha do livro: Na Corda Bamba, de Kiley Reid, traduzido por Roberta Clapp e publicado pela Editora Arqueiro em 2022.
Publicado no Brasil em 2020, Na Corda Bamba é a primeira obra da autora norte-americana Kiley Reid e traz para o debate o preconceito velado de pessoas brancas e privilegiadas, que se esforçam para serem boas e respeitosas com pessoas negras.
Emira, sua protagonista, é uma jovem negra perto dos 25 anos, sem formação superior e profissão definida, que trabalha em empregos provisórios e como babá para complementar sua renda.
“… mas esse era também o seu maior problema. Não havia nada que Emira amasse fazer, mas também não havia nada que ela se incomodasse em fazer”.
A trama começa em meio a uma emergência na casa dos Chamberlain — um casal branco, rico e bem-sucedido profissionalmente — e eles precisam de súbito chamar a babá Emira para ficar com sua filha Briar, em um sábado à noite.
Mesmo estando em uma festa com os amigos, a necessidade fala mais alto e ela vai. Ao chegar, os pais pedem que ela tire a criança de casa, enquanto eles resolviam a situação.
Com poucas alternativas naquela hora da noite, Emira passeia com a criança pelo bairro e acaba entrando em um mercado que ficava aberto até mais tarde.
Funcionários e clientes estranham uma jovem negra com roupas de festa, junto de uma criança branca, naquela hora da noite e pensando em proteger a criança, chamam a polícia. Após um longo constrangimento na abordagem policial, a babá liga para o pai da criança, que vem encontrá-la no estabelecimento, esclarece a situação com os policiais e todos são liberados.
Os pais da criança, Alix e Peter Chamberlain, se enchem de culpa e constrangimento, demonstrando querer se redimir pelo ocorrido. A babá, Emira, acostumada com esse tipo de situação, quer apenas esquecer o episódio e seguir a vida.
O problema, é que um rapaz, chamado Kelley, que estava no local, filmou tudo e se aproxima de Emira incentivando-a a fazer justiça e utilizar o vídeo para processar o estabelecimento e os policiais. A partir daí, a protagonista passa a viver conflitos entre o que quer fazer, conforme o que considera melhor para si mesma; e o que os outros querem que ela faça, alegando saberem o que é o certo a se fazer.
“Emira sabia que deveria ter ficado mais incomodada com o preconceito flagrante daquela discussão. Porém, mais do que expô-la ao racismo, a noite no Market Depot trouxe uma enxurrada de mal-estar e uma frase retumbante que sibilava: Você não tem um emprego de verdade.”
Expectativas e imposição de padrões sociais
A esta altura da vida, a jovem Emira sentia-se confortável com sua rotina. Trabalhava para viver — sem grandes aspirações e planos de carreira —, se divertia com os amigos e tinha uma rotina simples que não lhe preocupava tanto — quanto parecia preocupar seus familiares e amigos.
Não perseguia muitas ambições, mas era feliz. Contudo, as comparações com o que pessoas da sua idade deveriam estar fazendo, a faziam duvidar estar no caminho certo.
Ao mostrar Emira perdida e pressionada pelas expectativas dos outros, a autora demonstra como as cobranças externas podem ser paralisantes. Enquanto as amigas conquistam emprego fixo, casa, namorado, Emira, que ainda não escolheu uma profissão, se vê condicionada por sua realidade, não se permitindo sonhar ou traçar grandes objetivos.
Racismo velado de boas intenções
Por outro lado, os chefes de Emira, tentando compensá-la a todo custo pelo constrangimento no mercado, oferecem mais horas de trabalho com pagamento mais generoso. O sentimento de culpa, junto do medo sobre o que a babá poderia dizer sobre eles, os faz forçar uma amizade. Pois, mais do que não serem racistas, eles se preocupavam muito em não parecer racistas.
E tornar Emira mais um membro da família, parecia uma boa ideia. Assim, começa uma sequência irônica de fatos nos quais a mãe da criança, uma mulher branca, rica e conhecida por incentivar mulheres a serem independentes, fortes e respeitadas, resolve se dedicar ao objetivo de se tornar melhor amiga da babá negra e pobre.
“Alix fantasiava com Emira descobrindo coisas sobre ela que moldavam o que Alix via como a versão mais autêntica de si mesma. Como o fato de uma das amigas mais próximas de Alix também ser negra.”
Nesse processo fica evidente o quanto os universos delas são diferentes e como antes do fato com os policiais, a patroa branca não teve o menor interesse pela babá negra e não sabia quase nada sobre sua vida.
O excesso de cuidado, respeito, presentes, pagamentos extras, “conversas casuais” após o expediente, regado de boas intenções, surpreendem Emira, que, sem entender a mudança drástica, se vê constrangida, mas, ao mesmo tempo, reconhece que a situação lhe traz alguns benefícios.
Afinal, na sua situação uma grana extra ajuda muito e, mesmo percebendo que não se trata de uma amizade sincera, para ela o que importa é seguir sua vida tranquila e permanecer no emprego, já que se afeiçoou muito pela criança e não gostaria de deixá-la.
“Mas havia algo sobre o trabalho em si, o ato de cuidar de uma pessoa ainda tão pequena e dependente, que fazia com que Emira se sentisse inteligente e no controle. Era muito gratificante ser boa em seu trabalho, e melhor ainda ter a imensa sorte de poder trabalhar em algo que ela queria ser boa.”
Amor e preconceito
Ao mesmo tempo, Emira e Kelley — o rapaz que gravou o vídeo no mercado — se aproximam e a amizade evolui para um improvável romance, repleto de revelações. Esse relacionamento vai impactar surpreendentemente a relação de Emira com a família Chamberlain e fazê-la olhar com outros olhos relacionamentos com homens brancos, compreendendo que, às vezes, as diferenças pesam mais do que ela gostaria.
Em meio a muitas mudanças, expectativas, frustrações, conquistas e descobertas, Emira vive um carrossel de emoções na vida pessoal e profissional. Revelando ao leitor como o racismo estrutural se manifesta e como atitudes preconceituosas podem ser facilmente confundidas — por quem as pratica — com benevolência.
Fazendo o leitor — e todos os que defendem a luta antirracista — pensar sobre as nossas próprias atitudes no dia a dia. Evidenciando a urgência e relevância de estudar e se informar, para lutarmos lado a lado com pessoas negras, e jamais com qualquer superioridade.
De frente para o racismo
O livro trata de temas sérios e pesados, de uma forma tão natural e verissímil que assusta, mostrando detalhes que provavelmente pessoas brancas não percebem. O preconceito e o racismo estão institucionalizados de tal forma, que não havendo vigilância e intencionalidade, atitudes preconceituosas são cotidianamente reproduzidas.
Lembrando Angela Davis: “Não basta não ser racista, devemos ser antirracistas”, estar vigilantes e atentos aos nossos atos, a como naturalmente agimos de forma errada. O primeiro passo para mudança é assumir que somos preconceituosos, somos parte de uma sociedade racista. Somente assim podemos encarar para atitudes erradas e corrigi-las.
Sem dúvidas, é uma obra muito relevante capaz de nos fazer refletir, causando um desconforto necessário. Outros temas tratados na obra, como autossabotagem, insegurança, necessidade de atender a expectativas externas, trazem mais camadas para história, tornando-a ainda mais interessante. Indico muito essa leitura!
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Obrigada por ler! 🤓
Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.
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Nos vemos no próximo texto 🥰
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