Antologia de contos que se conectam pela cor da pele e lugar no mundo dos seus personagens.
Confira a resenha do Livro: Olhos D'água, de Conceição Evaristo, lançado em 2013. Para essa resenha foi lida a edição da Pallas de 2016.
Dura realidade refletida em Olhos d’água
Com um texto bastante direto e realista, Conceição Evaristo nos prende, nos transporta e nos coloca ao lado do personagem em meio a cena. Vemos e sentimos o que está sendo narrado. É duro, cruel e cortante. Não há meios termos, suavização dos fatos — apesar da escolha de palavras poéticas da autora. Estamos ali, vendo tudo.
O início, meio e fim de vivências periféricas, quase sempre trágicas, que não poupam ninguém: homens, mulheres, crianças.
Em lugares onde a vida é mais difícil, mais sofrida, mais confusa.
Onde o normal é a violência, a dor, a pobreza, a perda, a luta.
Situações que exigem esforço para querer continuar vivo.
“Eu sempre tenho dito que a minha condição de mulher negra marca a minha escrita, de forma consciente inclusive. Faço opção por esses temas, por escrever dessa forma. Isso me marca como cidadã e me marca como escritora também”. Conceição Evaristo, em entrevista para O Globo (2021).
No esforço de nos situar nesse contexto, Conceição brinca com a língua, unindo palavras para buscar novos significados — “águas-lágrimas”, “buraco-céu”, “quarto-marquise”, “gozo-dor” — que deem conta da complexidade dos acontecimentos.
Olhos D'água, de Conceição Evaristo, reúne quinze contos, alguns inéditos e outros retirados das suas publicações, desde 1990, na série Cadernos Negros, organizada pelo grupo Quilombhoje de São Paulo, que publica autoras e autores afrodescendentes brasileiros.
Lançado em 2013, por meio de uma lei de incentivo do Ministério da Cultura e da Biblioteca Nacional, que oportunizava publicações de autoras e autores afrodescendentes brasileiros, a obra logo ganha o espaço que merece. Já em 2015, venceu o Prêmio Jabuti na categoria contos, dando visibilidade ao livro e, segundo Conceição, legitimando sua presença no cenário da literatura negra.
Escritora que nasceu e cresceu na periferia mineira, trabalhou desde criança para ajudar no sustento da família. Sua decisão de lutar para poder seguir estudando, a fez trabalhar em casas de família em troca de aulas particulares e livros. O que muitos anos depois a faz se tornar exceção: consegue concluir os estudos, se torna professora e tem sua ascensão como escritora.
Atualmente Conceição é formada em letras, mestre em literatura brasileira e doutora em literatura comparada. Com sete obras publicadas, escreve contos, poemas e romance, tem participação em mais de 10 antologias e teve suas obras traduzidas para o inglês e francês.
Suas histórias, apesar de ficcionais, sabemos, são reais. Imitam a vida — ou uma tentativa de vida. Numa mistura de texto poético e de denúncia, nos deparamos com realidades rotineiras em nosso país, mas que fingimos não ver.
“Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida”.
A falta de dignidade é a morte em vida
Talvez por isso, todos os contos acabam em morte, seja ela no sentido literal ou figurado. Aliás, nada mais comum para essas pessoas do que morrer em vida. (Mas que vida?) Uma existência sem estruturas básicas de saúde, segurança, afeto, alimento, esperança. A morte, além de consequência inevitável, também aparece como solução: um acerto de contas, um alívio, uma fuga ou um presente.
Tão duro quanto necessário é olhar para essas histórias e pensar que elas narram a situação de pessoas que acabam na manchete do jornal, após mais uma tragédia.
“Habituou-se à morte como uma forma de vida”.
Sujeitos que nem sempre tomam os melhores caminhos, porque os melhores caminhos não eram dados como alternativa. Se andou pelo caminho que se enxergava, não havia outro.
Talvez a dor dessas histórias esteja na desesperadora indignação que nos acomete. Sabemos que todas essas histórias poderiam ser diferentes, com suas tragédias evitadas, se essas pessoas vivessem em outras realidades e tivessem outra cor de pele.
Como é a vida de quem precisa lutar pra viver? Trabalhar duro, pra ganhar pouco. Numa conjuntura de racismo estrutural a dignidade e oportunidades são seletivas. Muitas vezes, a falta de trabalho que leva a exploração e caminhos inimagináveis: o crime, a venda do próprio corpo, a trapaça.
Uns numa luta constante contra o tempo, para produzir, dar conta de tudo. Outros, vivendo no tempo das ruas em que o único compromisso é sobreviver a mais um dia.
Todos vivendo em sacrifício, nada é fácil, acessível ou tranquilo.
“Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e a qualquer hora”.
Vivenciar, através da leitura, a posição de quem precisa se esforçar física e emocionalmente para se manter vivo é um aprendizado sobre a existência humana. Com as engrenagens que podem impulsionar para a mudança, mas também, travar e parar o funcionamento.
“A pobreza pode ser um lugar de aprendizagem, mas apenas quando você a vence. Se não, é o lugar da revolta, da impotência, da incompreensão. E aí você não faz nada”. Conceição Evaristo, em entrevista para O Globo (2021).
Nos contos de Olhos D’água, personagens tentam se agarrar com o que tem: sua espiritualidade, fé e ensinamentos de seus ancestrais. Enquanto outros, mais terrenos, focam na ganância e nos prazeres da carne.
“Estava chegando uma época em que o sofrer era proibido. Mesmo com toda a dignidade ultrajada, mesmo que matasse os seus, mesmo com a fome cantando no estômago de todos, com o frio rachando a pele de muitos, com a doença comendo o corpo, com o desespero diante daquele viver-morrer, por maior que fosse a dor, era proibido sofrer. Ela gostava desse tempo. Alegrava-se tanto! Era o carnaval”.
A vida que se impõe
Sinto que um livro que fala tanto da dificuldade de viver e de morte, carrega em si a força da vida. Que se impõe e sobressai diante das maiores e reais dificuldades.
Lampejos de vida que chegam com o nascimento de uma criança; em olhos sempre marejados, transbordando lentamente a dor, mas ainda assim sorri; e com pessoas que fazem um pacto para não desistir: a gente combinamos de não morrer.
Talvez porque diante de tanta dor e sofrimento, a esperança seja a única possibilidade de seguir em frente. Com vida, força para resistir, e quem sabe ter oportunidade de lutar para mudar essa realidade.
Definitivamente não se trata de uma leitura fácil, mas é com certeza necessária.
“Ficamos plenos de esperança, mas não cegos diante de todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. A maior era nossa dificuldade interna de acreditar novamente no valor da vida…”.
Resenha do Livro: Olhos D'água, de Conceição Evaristo
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Obrigada por ler! 🤓
Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.
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Nos vemos no próximo texto 🥰